"Eu posso falar que eu sou heterossexual. Mas, como eu tenho uma identidade de gênero feminino, eu poderia dizer que eu sou lésbica. Sou uma mulher que gosta de outra mulher. Tecnicamente, heterossexual". Confuso? Um pouco. Mas, é assim que Veronika Schneider se define. Ela faz parte de um grupo numeroso de pessoas, do qual não se escuta falar com frequência, pelo menos, não no Brasil. São homens, heterossexuais, que gostam de se vestir de mulher.
O termo "Crossdresser", ou "CD", foi importado pelo Brasil em 1997, de acordo com o Brazilian Crosdresser Club. O significado literal é vestir-se ao contrário. Nos Estados Unidos e em alguns países europeus a palavra já está integrada ao vocabulário quando se trata de diferenciar a fantasia de usar roupas do sexo oposto, das opções sexuais de cada um.
Como encontrar o fio da meada destes homens que se vestem com roupas de mulher, sem, necessariamente, terem desejo por pessoas do mesmo sexo, tem sido o trabalho de pesquisadores que passam tempos estudando o perfil de um grupo, mas, na maior parte das vezes, terminam com análises inconclusivas.
No entanto, até para elas, ou eles, é confuso dizer o porquê do gosto peculiar. Para Veronika, com base nos incontáveis relatos de CDs que ela já ouviu, o interesse pelo universo feminino nasce ainda na infância.
"É uma coisa que vem antes de você ter uma identidade sexual", diz ela, que mantém os cabelos lisos e compridos, veste calças e camisetas justas e deixa transparecer trejeitos femininos ao falar.
A vontade de ser mulher é anterior ao desejo pela figura feminina. Veronika explica que o segredo está na diferença entre sexo e gênero. O crossdressing é uma prática fundamentada no gênero, tanto que surge antes da própria sexualidade. É como aconteceu com ela que, desde os seis anos de idade, tem o desejo de fazer parte do universo feminino.
Veronika conseguiu levar a "montagem" - termo utilizado pelo grupo em referência a se produzir com roupas e artigos de mulher - até os 14 anos. Depois, passou por uma fase de hibernação, por conta do trabalho e faculdade, até os 25. Desde então, não teve mais qualquer interrupção na prática de crossdressing. "Como a CD adota duas identidades, fica mais fácil para administrar o lado de sapo e o de princesa", disse. Sapo é o termo utilizado quando elas não estão montadas e princesa quando se produzem como mulheres.
Para fora do armário
"Eu vivencio meu crossdressing de forma bastante satisfatória, que causaria até inveja a uma cacetada de outras CDs de armário". É assim que se apresenta a elegante Solange Elizabeth Pearly. Hoje, aposentada, ela vive em um local afastado na região do ABC. Lá, desfruta da liberdade para viver e se vestir como quiser.
Mas nem sempre foi assim. CD desde criança, Solange conhece bem o período de hibernação. Ela é divorciada e tem dois filhos, o que a fez durante todos os anos em que passou ao lado da família, nunca revelar o segredo guardado desde a infância. Tinha que reprimir as vontades de se integrar ao universo feminino.
Ser crossdressser, mesmo assim, teve parcela de culpa no fim do relacionamento. "Minha mulher não conseguia entender algumas necessidades femininas que eu tinha", disse. Toda vez, então, que Solange era pega se depilando ou tirando a sobrancelha, a discussão tinha início. Até o dia em que sua esposa pediu o divórcio.
A partir de então, a CD diz ter começado a trilhar o caminho da felicidade. "Eu deveria ter assumido há mais tempo, mas, talvez, se o fizesse eu não teria tido filhos, então valeu", afirmou.
Solange passa o dia "montada" em casa, passeia pelas ruas nos arredores e "curte a vida". A melhor coisa da fase em que ela vive hoje é a descoberta de que assumir e encarar os sentimentos verdadeiros "é a chave para ser feliz". "Quando você, finalmente, diz eu sou isso e eu quero isso, neste instante, você galga o toque de liberdade", disse. "Talvez eu esteja agora mais inteiro do que estive em toda a minha vida, porque eu sou eu".
Para Solange, as mulheres são como deusas, são seres especiais. Já, pelos homens, ela conserva forte aversão; diz que travou uma guerra contra as pessoas do seu sexo, o masculino.
Apesar de toda determinação interior, a experiente CD conta que sempre procura andar em grupos quando a diversão é em São Paulo, por uma questão de segurança. Não são todos os lugares ou todas as pessoas, mas o preconceito existe em relação ao modo que ela e algumas amigas escolheram para viver. "As pessoas discriminam, porque não se contêm em ver o outro fazer algo que foge do padrão do que acham que deveria ser normal", disse.
Uma família quase normal
Márcia Souza vive um modo privilegiado de ser crossdresser. No passado, ela fez terapia e ouviu, de um profissional da Sociedade Brasileira de Psicanálise, que era completamente louca e deveria ser internada. Apesar disso, teve sorte. Ela é casada, tem filhos e uma vida como a da maioria das pessoas. A diferença é que sua mulher sabe que Márcia tem necessidade de se produzir como mulher. Não gosta, mas aceita. Até porque, a CD não deixaria de ser o que é caso fosse exigência da parceira.
"Foi uma coisa de repente. Nós estávamos jantando em um restaurante, ela perguntou para mim se eu já tinha saído na rua vestido de mulher e eu respondi que sim", disse. Márcia revelou à mulher que havia alguns crossdressers que se reuniam periodicamente. Ela acessou o endereço eletrônico do grupo, apenas uma vez, e nunca mais quis saber do assunto. Segundo Márcia, sua parceira nunca a viu "montada" e nem tem vontade; o que é bom, pois a CD gosta de deixar as duas coisas bem separadas. "Eu, como sapo, sou bem sapo", disse.
Se pudesse escolher, diz que não gostaria de ser transgênero. "O que eu sei é que, desde pequena, gostava de ser as meninas. Já estudei, li, pesquisei e continuo sem saber o porquê disso", afirmou. Ela diz que adoraria poder ser uma só pessoa, mas, na prática, isso é impossível, pois criaria muitos problemas com os familiares e amigos. Além do mais, seu desejo não é se tornar uma mulher em tempo integral. "Sempre seremos um homem, vestido de mulher".
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