(Letícia Lanz, 23-07-2013).
Ser mulher é uma vocação, um chamado sagrado da Vida para a celebração da Vida. E não basta nascer fêmea, com uma vagina entre as pernas, para entender e acudir a esse chamado! Quantas mulheres se renderão ao canto de sereia do patriarcado machista, com suas promessas de segurança e proteção, que não passam de rendição e submissão eternas às suas determinações.
Ser mulher é uma vocação, um chamado sagrado da Vida para a celebração da Vida. E não basta nascer fêmea, com uma vagina entre as pernas, para entender e acudir a esse chamado! Quantas mulheres se renderão ao canto de sereia do patriarcado machista, com suas promessas de segurança e proteção, que não passam de rendição e submissão eternas às suas determinações.
Ser mulher não é pra qualquer pessoa, não. Marmanjos, então, mal-acostumados às vantagens e privilégios do mundo patriarcal-machista, não suportariam ser mulher por um instante sequer! Trans-mulheres, então, que apelam para a existência de um “destino cruel e inexorável” que as teria “empurrado” para a condição de ser mulher, nem se fala!
Insatisfeitas e sempre inconformadas com as vicissitudes que devem enfrentar na sua caminhada – em tudo por tudo semelhantes às sofridas pelas mulheres que nasceram com uma vagina entre as pernas – muitas trans-mulheres alegam, nos seus acessos de autopiedade neurótica, não terem podido escolher não entregar-se a essa “terrível condição, menor e subalterna, de ser mulher”. Julgam-se vítimas de alguma determinação – maligna – do “destino” afirmando, com tristeza e ódio, que ser mulher, para elas, não se trata de nenhuma “escolha deliberada” mas de uma lamentável “pegadinha da vida”…
Esse não é definitivamente o meu caso. Na minha história, o tal do “destino” entra em cena apenas para ser checado, confrontado e veementemente renegado. A minha verdade, e de muitas outras trans-mulheres que conheço e admiro, é que eu nasci para ser homem – e nunca quis ser homem. Sou mulher porque escolhi ser mulher. Porque acredito que, no meu caso, era a melhor escolha que eu poderia fazer, pois nunca me adaptei e tampouco me senti confortável em nenhum “modelo de homem” que me foi apresentado desde que eu nasci. Escolhi ser mulher por acreditar ser a melhor escolha para uma pessoa como eu, sempre em busca de crescer e desabrochar como ser humano, coisa que eu nunca pude realizar plenamente sendo homem. Escolhi ser mulher para livrar-me da camisa-de-força da masculinidade que dá com uma mão e tira com as duas, sem nenhuma piedade ou consideração pelo “estado da alma” de cada indivíduo classificado como homem.
Eu podia perfeitamente estar sendo homem. Não fosse por outras “vantagens” desse gênero, ostensiva e permanentemente enumeradas por machistas, inclusive mulheres e trans-mulheres machistas, eu podia ser homem pelo simples fato de ter nascido com a (única) credencial que essa nossa sociedade hipócrita exige para fazer o enquadramento na categoria: – um pinto entre as pernas.
Pelo simples fato de ter um pênis, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, eu podia estar traficando, estuprando, surrando travestis. Mas preferi abrir mão de todos esses privilégios para me tornar conscientemente mulher.
Por nascido macho, eu podia ser um (im)pastor, pregando ódio em templos fundamentalistas, iludindo os fieis com falsas promessas de paraísos, exercendo livremente o estelionato sob a proteção da lei. Mas abri mão de todas essas “possibilidades de prosperidade e sucesso” ao escolher ser mulher.
Eu podia andar desleixado, maltrapilho, sujo e mal-cheiroso, ostentando a minha “superioridade de macho”, preso num corpo de bunda dura e coração empedernido, duramente treinado e condicionado para não chorar nunca, para jamais demonstrar nenhum sentimento nem ter qualquer consideração pelos sentimentos dos outros. Mas em vez de andar por aí com aquele ar de todo-poderoso “ser superior”, criado diretamente pelo Criador, eu escolhi ser mulher.
Escolhendo ser mulher, escolhi assumir e mostrar a fragilidade de todo e qualquer ser humano, em vez de esconder-me sob aquela couraça da arrogância e prepotência que caracteriza a masculinidade hegemônica. Escolhi deixar fluir minhas emoções, em vez de renega-las e reprimi-las, substituindo o ser humano que existe em mim pela figura patética do sujeito frio e racional. Escolhi, enfim, deixar meu corpo invadir-se por toda sorte de estímulos da vida, em vez de permanecer imóvel, duro e alienado feito uma estátua de pedra, resistindo de todas as formas em participar do movimento do universo.
Ser mulher foi minha autorização para viver a minha vida, breve como ela é. Para deixar de ser escravo de um mundo de normas e restrições que condicionam o “ser homem” e, mais ainda, o “parecer ser” homem. Escolhi a liberdade, em vez da submissão acrítica a todas sorte de interdição social, política, cultural e religiosa; a todo mecanismo de repressão e controle social feito para inibir e impedir o homem de ser gente, desde o simples ato de dançar, movimentando livremente os quadris, até a rendição incondicional do espírito aos “misteriosos mistérios” do Universo…
Eu podia, sim, ser agora um babaca, misógino, transfóbico, pulha, estelionatário, machista, chato, reacionário-conservador. Mas, por escolha própria, enfrentando todo tipo de oposição e resistência - interna e externa – eu escolhi e estou sendo mulher. E tenho muito, mas muito orgulho mesmo, de ter feito essa escolha.
Enfim, ao contrário de certas transmulheres que se julgam “vítimas da natureza”, eu não me tornei mulher por uma simples contingência do destino. Sou mulher por escolha própria. Se tive que lutar foi exatamente para escapar ao destino que foi traçado pra mim e que de todas as formas me impedia de ser a pessoa que eu sou. Mas em todos os momentos da minha escolha eu sempre estive consciente das imensas dificuldades que teria pela frente. Não pelo fato de ser uma transmulher, mas simplesmente pelo fato de me tornar mulher.
Portanto, trans-mulheres que rejeitam e se queixam continuamente do desprezo e da discriminação com que são tratadas pela sociedade que-aí-está, lamentando e praguejando o fato de estarem sendo escorraçadas pelo mundo patriarcal-machista, quero lhes dizer que, talvez, vocês não tenham feito a escolha certa. Talvez estejam preferindo sentir-se “pobres vítimas do destino” em vez de assumir as rédeas da própria vida, tornando-se arquitetas do seu próprio futuro.
Ao escolherem “ser mulher” saibam que eles ainda matam mulheres, sim. Saibam que eles não gostam de mulheres, que eles ainda morrem de medo dos poderes da mulher. Por isso mesmo, tentam restringir a autonomia da mulher de toda maneira que podem. Se vocês não gostam disso, se não se sentem à vontade tendo que lutar pelo seu “lugar no mundo” como faz toda mulher, todos os dias, parem de chorar as dores de ser mulher e voltem a ser homem. Correndo. Essa certamente deve ser a melhor escolha para vocês e tenho certeza que serão recebidas de braços abertos, como pessoas “re-generadas”…
PS – como sempre, peço sinceras desculpas aos grandes homens da minha vida, aqueles que me ajudam a não perder a fé em formas mais elevadas de convivência entre as criaturas humanas, onde o sexo não seja o determinante de tudo: – meu pai, meus filhos Raphael e Samuel, meu amigo Henrique, meu amigo Sílvio, meu especial companheiro de lutas João Nery. Sei que vocês sabem que não estão nesse “descarte geral” que faço da masculinidade hegemônica! Viva vocês!
Nenhum comentário:
Postar um comentário