quarta-feira, 8 de março de 2017

Quer Ver?


- Querida… diz o marido para a esposa, no meio de uma cena romântica na novela que passa na TV.
- Sim… responde a mulher, sem despregar os olhos da telinha.
- Comprei umas calcinhas novas… Estava precisando…
- Calcinhas novas? Repete a mulher, erguendo os olhos da telinha em direção ao marido.
- …Mas eu nem estou precisando de calcinhas novas, bem! …Já sei: – deve ser daquelas calcinhas de Sex Shop…Você deve estar tramando alguma coisa para hoje a noite…
- Não, querida. As calcinhas não são para você: – são para mim. Eu é que eu estava realmente precisando…
- ???Como assim, precisando? Pare de brincadeiras, Fred. Você sempre arruma alguma coisa para chamar a atenção na hora da novela.
- Não é brincadeira não, Bete. Eu comprei mesmo umas calcinhas novas. Estava precisando, já disse!
- Ta querendo me alugar, é? E justo na hora da novela… Desde quando você usa calcinhas, Fred?
- Desde que eu me entendo por gente, Bete. Comecei lá pelos cinco ou seis anos de idade. A primeira que usei era da minha irmã, a Leila…
Diante da resposta objetiva e direta do marido, a mulher volta toda a sua atenção para ele, esquecendo-se por completo da sua inseparável telinha.
- Como é que é, Fred? Então você usa calcinhas mesmo? É verdade isso que você está dizendo? Você não ta brincando comigo?
- É Bete. É verdade. E como eu lhe disse, eu estava precisando de calcinhas novas. Então passei na C&A e comprei logo uma dúzia. Fazia muito tempo que eu queria fazer isso.
Bete, visivelmente confusa.
- Tô pasma. Não sei o que dizer.
- Não precisa dizer nada, Bete. Eu não espero que você diga nada. Só achei que devia lhe comunicar que eu comprei umas calcinhas novas pra mim. Ah! E uma caneta de marcar roupas para não misturar com as suas, na hora de lavar. Hoje eu quero ter o prazer de jogar pessoalmente todas as minhas cuecas no lixo.
Bete, atônita.
- Fred, mas isso não é possível! Como é que você pode fazer uma coisa dessas? Calcinha é roupa de mulher, Fred. Você está fazendo uma coisa ridícula. Calcinha não é coisa de homem!
- Não me interessa que seja ou não de homem. Acontece que eu sempre gostei de usar calcinha e as duas que eu tenho já estão pra lá de velhas… Além de eu ter que usa-las escondido de você e de todo mundo… Cansei de usar calcinha escondido de todo mundo e cansei das cuecas. Eu odeio cuecas! Eu adoro lingerie, seda, renda! Odeio essas coisas horrorosas de algodão!
- Mas você sempre usou cuecas, Fred!. O que é que deu em você agora para querer usar calcinhas?
Bete faz uma longa pausa, como se tentasse encontrar uma explicação para o que estava ocorrendo.
- Sabe o que é, Fred, acho que você está trabalhando muito. É isso, você está estressado. Pessoas estressadas começam a trocar os pés pelas mãos. Fazem besteiras. Eu compreendo, Fred. Comprar calcinhas deve ter sido o jeito que você encontrou de se espairecer um pouco… Você não pode levar as coisas tão a sério…
- Bete, me ouça, por favor: eu não estou estressado, eu não fiz besteira nenhuma e nem comprei calcinhas só para me espairecer, como você diz. Eu comprei calcinhas porque gosto de calcinhas. Só isso e nada mais. E de hoje em diante eu nunca mais usarei uma cueca em minha vida. Dá pra você entender isso ou vou ter que explicar tudo de novo?
- Ah, não, Fred! Uma coisa dessas não pode estar acontecendo ! Nós nos conhecemos há mais de vinte anos e você sempre usou cuecas… pelo menos na minha frente… Só de casados temos dezoito anos. Dezoito anos vivendo juntos, debaixo do mesmo teto, dormindo na mesma cama, e você sempre de cuecas! E agora, de repente, você chega pra mim e diz que sempre usou calcinhas escondido de mim e que daqui pra frente nunca mais vai usar cueca! Além do mais, você sempre gostou de mulher – eu tenho certeza disso. Agora, depois de velho, você resolve ser bicha, resolve ser viado, gostar de homem? Eu não posso acreditar no que você está me dizendo, Fred!
- Bete, de onde você tirou isso? Que eu gosto de homem, que eu sou viado? Depois de velha resolveu ser preconceituosa também, é? Eu não sou viado, mas se fosse, também não tinha problema nenhum. Ser viado não é crime nem pecado. Seu irmão é e a gente sempre se deu muitíssimo bem. Ele sempre foi um dos meus melhores amigos…
- Ah, então é isso. O Otávio é que está desencaminhando você! Eu já reparei que vocês sempre gostaram de andar juntos. Eu devia ter suspeitado que havia mais alguma coisa. Como eu pude ser tão ingênua, meu Deus!
Fred, encarando Bete nos olhos, bem na frente do monitor de TV.
- Bete, me ouve. Desliga essa porra dessa televisão e me ouve. Em primeiro lugar, EU SÓ LHE DISSE QUE COMPREI CALCINHAS NOVAS, mais nada. Em segundo lugar, EU NÃO SOU GAY E O SEU IRMÃO NÃO TEM NADA A VER COM A MINHA COMPRA. NEM ELE NEM NINGUÉM. E pra encerrar estou lhe comunicando que eu decidi NUNCA MAIS USAR CUECAS EM MINHA VIDA! DE HOJE EM DIANTE SÓ USAREI CALCINHAS E PONTO FINAL. Entendeu ou quer que eu desenhe?
Na TV, a novela continua, com a mocinha sendo ameaçada de morte pelo vilão. Resmungando, Bete desliga o aparelho, encara Fred e solta os cachorros.
- Tudo isso que você está me dizendo é completamente absurdo, Fred! Usar calcinhas, comprar calcinhas, livrar-se das cuecas! Imagine só que vergonha: você, comprando calcinhas – pra você mesmo – em plena C&A! O que é que as funcionárias devem ter pensado de você, meu Deus?
- Eu já comprei tanta roupa pra você, Bete. Não sei porque essa sua preocupação agora. Toda hora eu compro  absorventes pra você na farmácia e você nunca pensou no que é que o farmacêutico ia pensar de mim.
- Não me venha com essa, Fred. Você sabe muito bem que aí é diferente. As roupas que você comprou eram para mim e não pra você. São duas coisas completamente diferentes “comprar calcinhas pra você usar” e “calcinhas pra eu usar”! Um homem pode perfeitamente comprar roupa de mulher para a própria mulher, mas não pra ele mesmo!
- E como é que a vendedora vai saber se a calcinha é pra mulher ou para o próprio marido, Bete? Como é que ela vai saber? Você está delirando. E além do mais as vendedoras não têm nada a ver com o que a gente está comprando. Elas estão ali pra vender e não pra decidir se uma pessoa deve ou não comprar esse ou aquele produto.
- Eu sei que elas não têm nada a ver com o que cada um compra ou deixa de comprar. O problema é o homem comprar roupa de mulher pra ele próprio usar. Isso sim, é uma coisa absurda, inconcebível!
- Mas eu já lhe disse, Bete, as minhas calcinhas estavam velhas, muito velhas. Uma delas eu tenho há mais de dez anos! Você sabe o que é usar a mesma calcinha – escondido – por mais de dez anos? Você não usaria. Tenho certeza que não! Aliás, a outra que eu tenho, e que já está bem velhinha também, é uma que você jogou fora – no lixo – há uns quatro anos. Lembra, Bete? Ela estava novinha. Mas você a descartou aquela dizendo que a renda da parte de trás era diferente da renda da parte da frente. Pois é. Eu peguei pra mim. No lixo, Bete. No lixo… Jogada fora só por causa da renda…
- Fred eu não posso acreditar nessas coisas que você está me dizendo! Meu Deus do céu! Meu marido é gay! Meu marido usa calcinha escondido! O que é que as minhas amigas pensarão de mim quando souberem disso? Eu estou casada há dezoito anos com um homem que usa calcinhas! Eu não acredito, não é possível. E os seus amigos do futebol, Fred, o que é que você vai dizer quando eles virem você de calcinha? Ah, essa eu pago pra ver!
- Eu não vou dizer nada porque ninguém tem nada com isso. Eu só estou dizendo a você porque a gente dorme junto, na mesma cama. Eu não durmo junto com nenhum dos meus amigos do futebol…
- Sei lá. A essa altura eu não acredito em mais nada do que você diz. Estou duvidando de tudo. Ou então estou sonhando. É isso: eu estou sonhando. Me belisca pra ver se eu acordo. Belisca, vai…
Agora Bete começa a chorar, visivelmente transtornada.
- E os nossos filhos, Fred? Você pensou no Artuzinho, no Rodrigo? Temos dois filhos, Fred! Dois filhos homens! Dois filhos machos, que usam cuecas, sabia? Cu-e-cas, como todo homem usa. E eles não são gays. Mas o pai é. Usa calcinhas. Calcinhas de mulher! É isso que você quer, Fred, ser mulher? Ah, deve ser isso. Eu vi um cara que se operou pra trocar de sexo no programa da Ana Maria Braga.
Bete chora, compulsivamente, até que Fred rompe o silêncio profundo, pesado, em que se encontrava.
- É, Bete, diz Fred de maneira franca. Pra ser sincero, é o que eu sempre quis ser em minha vida… Mas só de vez em quando…Apenas de vez em quando, entende? Nada de ser mulher em tempo integral. Pode ficar tranquila com isso.
Diante da resposta do marido, a mulher pára de chorar, e muda completamente de humor, passando a demonstrar raiva, muita raiva.
- Então você quer ser mulher, mesmo, né Fred? Meu marido agora vai ser travesti. Travesti, não! Como é mesmo o termo que eu li na revista outro dia? Transexual! É isso. Meu marido vai operar e virar mulher. Depois de velho. Ou melhor, depois de velha! Você não acha ridículo um homem da sua idade estar pensando tanta besteira, Fred? Pois é ridículo, ridículo, ridículo. Eu não acredito que você esteja pensando em fazer uma coisa dessas. Isso tudo que eu estou ouvindo não pode estar saindo da sua própria boca!
- … seria pior se você estivesse ouvindo pela boca de outra pessoa, não acha?
- Não seja irônico, Fred. Eu estou bestificada com você.
- Bestificado estou eu, com a sua reação. Imagine fazer todo esse “auê” só porque eu disse que comprei umas calcinhas novas pra mim. Isso sim, é ridículo, Bete. Francamente! Eu achei que você fosse mais madura e fosse capaz de respeitar o desejo das outras pessoas.
- E como é que você queria que eu reagisse? Batendo palmas? Pedindo “bis”? Meu marido de 20 anos de casada chega dizendo que comprou calcinhas novas – pra ele mesmo usar – e que vai jogar todas as suas cuecas fora, e quer que eu diga simplesmente: nossa! Que legal, amor! Estou super feliz pelas suas compras! Bravo! Bravíssimo!
Bete, murmurando: – se ao menos fossem cuecas novas! Mas são calcinhas, meu Deus, calcinhas…
Fred, indignado: – afinal de contas, Bete, você está casada comigo ou com as minhas cuecas? Se gosta tanto assim delas pode ficar com todas. Dou de presente pra você. Faça bom uso.
Bete, ruminando a meia voz: – … meu marido, travesti e transexual… usando calcinhas… quando é que eu podia imaginar que viveria uma situação dessas? Eu casei com um homem, macho, que usava cuecas…
- Nem travesti, nem transexual, Bete. Eu sou crossdresser. Cross-dre-sser.
- “Cross” o que?
- Dresser, Bete. Cross-dre-sser. Descobri que eu era crossdresser na internet. E saiba que tem um monte de homens por aí iguais a mim. Um monte, viu! Homens casados, com filhos, que não são gays, que gostam de mulher mas que usam calcinhas.
- Claro que sei desses “homens” que você diz, Fred. Não passam de sujeitos que usam o casamento como fachada para fazer as suas poucas-vergonhas. E ainda por cima arrumam nome estrangeiro para fingir que não são travecas. Me poupa, Fred! Sou uma mulher vivida, experimentada. Esses nomes estrangeiros é pura enrolação! Isso pode funcionar com menininhas bobas, que engolem qualquer história dos maridos. Comigo não!
- Mas eu só gosto de usar calcinhas, Bete! Eu juro! …E um “saltinho alto” de vez em quando…
Bete, explosiva.
- Agora já sei porque os meus sapatos de salto se alargam com tanta facilidade! Calcinha e salto alto, hoje; hormônio feminino e operação pra mudar de sexo, amanhã. Eu conheço essa história, Fred.
- Bete, não seja tola! Eu nunca ficaria sem o meu pênis! Não sou transexual, nem travesti, nem gay! Eu sou crossdresser, entendeu? Crossdresser não é gay, não toma hormônio nem faz operação pra mudar de sexo!
- Isso é o que você está me dizendo. Um homem que gosta de usar calcinhas, sapatos de salto e diz que quer ser mulher – de vez em quando – está apenas a meio caminho de se tornar uma mulher inteira, transando com homens. E sem o pingolim!
- Acredite-me, Bete. Eu sou apenas um crossdresser. Eu curto apenas “expressar a minha feminilidade…” Só isso; nada mais. Eu nunca conseguiria ser mulher de tempo integral.
- Taí! Nisso eu acredito. Mesmo porque você não convence ninguém, meu filho. Ou devo dizer “minha filha”? Calçando 42, com quase noventa centímetros de ombros e esse registro de tuba na voz, você não consegue passar disfarçado de mulher nem na frente de um cego! E que mulher você vai ser, hein? Mulher-Maguila? Não me faça rir, Fred. Já pensou quando meu pai souber?
- Ele não precisa saber de uma coisa dessas.
- Ele vai acabar sabendo, mais cedo ou mais tarde.
- Só se você contar…
- Eu contar? Nem morta! Prefiro morrer de doença ruim do que passar uma vergonha dessas!
– Mas são apenas calcinhas, Bete. Calcinhas novas. As minhas já estavam velhas demais, eu já falei. Será preciso todo esse escândalo por causa de umas miseráveis calcinhas novas?
- Não se esqueça dos sapatos de salto alto, meu bem… E de você me dizer que quer ser mulher de vez em quando…
Fred, sedutor.
- Ah, Bete! Dá uma força pro seu homem, vai? Eu prometo jamais usar calcinhas na frente de quem quer que seja, além de você. Afinal de contas, você nunca me viu usando uma, viu? Nem suspeitar você suspeitava…
- Nunca vi e nunca hei de ver! Vou lhe avisando: nunca se arrisque a se aproximar de mim usando calcinhas! Nunca!
A discussão é interrompida. Fred parece estar esperando Bete acabar de digerir o papo. De repente, ela recomeça a falar.
- Deus me livre! Como pode ser uma coisa dessas? Um homem de quase dois metros, cheio de pelos no corpo todo, usando calcinhas! É horrível! Deve ficar parecido com um orogotango de lingerie!
- Aí é que você se engana! Antes de comprar as calcinhas novas, fui a um salão e realizei o maior sonho da minha vida, que era depilar-me por completo, dos pés à cabeça, incluindo as costas. Não ficou nem um pelinho pra contar a história! Quer ver?

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