Assumir uma identidade transgênera é absurdamente mais complexo do que viver como uma pessoa cisgênera comum, feliz e “bem ajustada”, pelo menos teoricamente, ao “código de conduta de gênero”, ou seja, às normas e papeis sociais que a sociedade impõe a cada indivíduo em função do seu sexo biológico (macho ou fêmea),
Ao contrário da pelo menos aparente maioria cisgênera, que segue mecanicamente, sem nenhum questionamento, os dispositivos de gênero que lhe são impostos, as pessoas transgêneras, para serem “elas mesmas”, são obrigadas a transgredir a ordem vigente, uma vez que a sociedade simplesmente não reconhece e não aprova a sua existência, negando legitimidade a qualquer outra expressão de gênero fora do binômio masculino-feminino.
Ou bem você é homem ou bem é mulher. Não existe nenhuma possibilidade de você existir oficialmente fora dessas duas – únicas – alternativas de enquadramento de gênero. Se após consultar a lista do que é ser homem e a lista do que é ser mulher você concluir que não se enquadra exatamente em nenhuma delas, ou que se enquadra nas duas, ou que se enquadra apenas parcialmente em uma delas, ou que se enquadra exatamente na lista oposta ao seu sexo biológico, ou em qualquer outra combinação considerada esdrúxula pela sociedade, não adianta ir reclamar com o papa que Deus se esqueceu de deixar um lugar pra você neste mundo. Para ele, e para todos os demais guardiães da “moral, das tradições e dos bons costumes”, você é simplesmente um “degenerado” (literalmente alguém que não possui ou perdeu as características do seu gênero), um “fora-da-lei”, que deve ser perseguido e excluído do convívio em sociedade. Na melhor das hipóteses, você nunca conseguirá ser muito mais do que um “ninguém”, sem direito a exercer nem mesmo alguns dos mais elementares direitos humanos, assegurados constitucionalmente a qualquer cidadão “generado” ou “cisgênero”…
As travestis, por exemplo, vivem na pele, dia e noite, os efeitos do implacável estigma social contra o travestismo masculino, estigma ancestral e totalmente fora de propósito no mundo de hoje, mas que ainda sobrevive, praticamente sem arranhões, a despeito dos grandes avanços dos direitos humanos realizados ao longo do século XX. À exceção de algumas culturas onde eram e/ou ainda são reconhecidas como pessoas dotadas até mesmo de poderes sobrenaturais, as travestis sempre foram tratadas com extremo desprezo e repulsa pela sociedade. Mesmo sendo um fenômeno que sempre esteve presente no cenário urbano antigo e moderno, e embora praticamente todas as travestis afirmarem, categoricamente, não serem nem homem nem mulher, mas “travestis”, jamais foram nem aceitas, nem reconhecidas, nem legalmente tratadas como uma categoria de gênero que efetivamente são, além do binômio oficial masculino-feminino.
Os crossdressers, por sua vez, vivem tão assustados com a possibilidade de deterioração da sua imagem pública (e a consequente perda de privilégios como membros que são da classe média alta e alta do país), que a maioria jamais revela ou assume a condição de transgênero, nem mesmo para pessoas do seu círculo mais íntimo. Os que têm mais ousadia conseguem, quando muito, viver uma vida dupla, à custa de descargas paquidérmicas de adrenalina, driblando a vigilância moral da família e da comunidade para expressar, furtivamente, a própria identidade transgênera, através de montagens às escondidas e saídas às ruas, cheias de culpa, vergonha e medo. Os menos “ousados”, isto é, a maioria, passam a vida trancafiados em seus armários, esperando que lhes aconteça (de forma completamente mágica, já que jamais se exporiam publicamente a qualquer tipo de militância pelos seus direitos…) pelo menos uma, de duas coisas altamente improváveis de acontecerem “por elas mesmas”: 1) que o mundo lá fora finalmente compreenda e aceite como algo natural a expressão pública da sua identidade transgênera ou 2) que, de repente, nunca mais venham a sentir o incontrolável impulso interior de mostrarem-se ao mundo de uma maneira que o mundo definitivamente não aceita, condena, reprime e não quer ver.
Inegavelmente, o travestismo é a razão principal ou o ponto mais evidente das pessoas transgêneras serem tão rejeitadas pela sociedade. Graças à sólida doutrinação político-religiosa que recebem, as pessoas em geral acreditam que nada é mais ridículo, indigno e desprezível para um macho biológico do que mostrar em público algum traço de feminilidade no seu comportamento. Acham que ser homem(assim como ser mulher) é algo natural, que já vem no sangue… Por isso mesmo, todo homem (como toda mulher) devia sentir muita vergonha de não ser aquilo que a “natureza” quiz que ele fosse. Poucos percebem que essa “vergonha” não é nata e muito menos genética: ela é aprendida socialmente. Resulta de uma exaustiva, sutil e permanente lavagem cerebral que incute na cabeça de um homem, desde os seus primeiros momentos de vida até a sua morte, um rígido modelo de masculinidade a ser seguido. Desse modelo ele jamais poderá se afastar um milímetro sequer, sob pena de ser taxado de “efeminado”, “maricas”, “viado”, “mulherzinha”, e outros adjetivos tão ou mais pejorativos.
Por essa razão, a ideia de não ser suficientemente “másculo” passa a ser a primeira, a mais fundamental e mais constante preocupação de um homem. Qualquer que seja a hora, o lugar ou a situação que um homem esteja vivendo, seu maior medo é de não estar sendo suficientemente homem. Mesmo quando está sozinho, quando não há ninguém por perto para avaliar o seu ” grau de macheza”, bate-lhe uma tremenda insegurança quanto ao seu ajustamento ao modelo de homem construído e mantido pela sociedade. Ao adquirir, por exemplo, itens de vestuário para o seu uso pessoal, a primeira questão que vem à cabeça de um homem não é se ele gosta ou não de uma determinada roupa ou calçado, nem se a roupa se ajusta e lhe cai bem, mas se os artigos adquiridos podem ser inequivocamente reconhecidos pelas outras pessoas como sendo roupas ou calçados “de homem”.
Ao nascer, toda mulher recebe um “atestado de mulher”, com validade para a vida toda. Ninguém pensa que uma mulher deixa de ser mulher ao desempenhar um papel ou exibir um comportamento tradicionalmente masculino. Ao contrário, hoje em dia, a mulher costuma ser até elogiada por desempenhar funções tipicamente masculinas, como se tal façanha representasse uma espécie de upgrade na sua carreira e no seu status social.
A muito bem sucedida “revolução feminista”, que ocorre no planeta desde meados do século passado, é uma das razões da mulher estar hoje presente em praticamente todas as áreas de atividade humana exercendo, cada vez mais, papeis tradicionalmente masculinos, sem que a sua feminilidade seja posta em cheque por causa disso. Está cada vez mais raro algo que possa ser considerado comportamento ou atividade não-feminina, já que a mulher adquiriu a liberdade de se vestir e de se comportar no mundo da maneira que bem entender.
Ao contrário da mulher, o “atestado de homem” que o macho biológico recebe ao nascer é totalmente instável, sempre com validade muito limitada e efêmera, podendo ser contestado, impugnado e cassado a qualquer momento ao longo da sua existência. Qualquer deslize do macho biológico no cumprimento do rígido código masculino de conduta provoca a imediata revogação do seu “atestado de homem”. Não basta, portanto, a uma pessoa, ter nascido macho biológico para ser considerada homem pela vida inteira: – ela deve renovar continuamente o seu “atestado de masculinidade”, provando ser mesmo homem, em todos as oportunidades, lugares e ocasiões, através de todos os meios e mecanismos possíveis e imagináveis.
É dura e sufocante a rotina do macho biológico ter que fornecer provas o tempo todo, a fim de garantir a validade do seu “atestado de masculinidade”. Implica, dentre inúmeros outros bloqueios e interdições, em jamais demonstrar qualquer tipo de interesse (ou, ao contrário, mostrar sempre um enorme desprezo) por qualquer coisa relacionada ao mundo feminino. Qualquer traço de feminilidade identificado no desempenho de um homem é algo absolutamente repulsivo e indesejável, causando a imediata impugnação do seu atestado de masculinidade. O homem que mostrar publicamente algum atributo considerado feminino será imediatamente enquadrado como “gay efeminado” ou, na melhor das hipóteses, como doente mental.
Na sociedade patriarcal e machista em que vivemos, onde a mulher ainda é considerada inferior até mesmo por muitas das próprias mulheres, é mais fácil aceitar-se uma fêmea que busque nivelar-se ao homem do que um macho que queira nivelar-se com a mulher. “Afinal de contas”, diz o inconsciente patriarcal-machista, do alto da sua histórica e paquidérmica arrogância, “quem não gostaria de ser membro do gênero mais privilegiado, do gênero verdadeiramente superior que é o gênero masculino?” Da mesma forma que “só pode ser maluco e descompensado um homem que queira rebaixar-se na hierarquia social, tentando igualar-se à mulher, assumindo comportamentos e atitudes femininas e/ou adotando símbolos de feminilidade, como roupas, calçados, adornos, maquiagem, etc”.
É muito curioso (para não dizer completamente “idiota”) a crença de que homem que gosta de usar roupas femininas é necessariamente gay. Pense um pouco e responda quantos homens homossexuais você conhece que se apresentam em público vestidos com roupa de mulher? Ao contrário, homens homossexuais têm buscado exibir em público uma figura e um comportamento imaculadamente masculino. Não fosse a sua orientação homossexual, a maioria absoluta dos gays poderia ser apresentada como perfeitos exemplares de masculinidade. Hoje em dia, são os gays que mais malham nas academias, em busca de um físico masculino perfeito. Artistas de cinema, como Rock Hudson, ou cantores pop como George Michael ou Rick Martin, sempre foram venerados pela mulherada como perfeitos exemplares de homem. Sem falar que inúmeros estudos científicos já demonstraram que a incidência de orientação homossexual entre pessoas transgêneras se dá na mesma proporção verificada na população cisgênera. Ou seja, transgêneros não são necessariamente gays, assim como gays definitivamente não usam roupas femininas para expressar a sua orientação sexual.
Existem, porém, argumentos ainda mais tolos e sem sentido, funcionando como verdadeiras “cortinas de fumaça” a encobrir as verdadeiras razões do estigma imposto contra homens que se travestem. A maioria desses argumentos são tolices preconceituosas do tipo “isto é uma coisa errada”, “é pecado um homem se travestir”, “ vai contra os costumes” ou “a sociedade não aprova uma coisa dessas”. Como afirmei antes, nem de longe essas seriam as verdadeiras razões do repúdio social contra o travestismo masculino. A franca oposição da sociedade ao travestismo masculino e outras formas de “feminização” do homem tem muito mais a ver com a tentativa de manutenção do poder histórico do homem sobre a mulher, poder esse que vem sendo silenciosa e sutilmente “solapado” pela contínua ampliação do espaço feminino na sociedade.
Grande parte das pessoas, tanto homens quanto mulheres, ainda acreditam que o papel da mulher na sociedade é meramente subalterno e coadjuvante em relação ao papel do homem, devendo portanto lhe ser obediente e subserviente, acatando e cumprindo integralmente as suas determinações.
Nessa linha de raciocínio patriarcal-machista, tudo que a mulher faz teria o objetivo precípuo de atender ao homem, sua principal referência e motivação. Por exemplo, quando a mulher se produz visualmente, com o esmero e o requinte considerados “próprios da feminilidade”, ela o faz exclusivamente com o objetivo de agradar, impressionar e ganhar a atenção dos homens. É muito fácil (e besta!) concluir, então, que qualquer homem que queira se travestir de mulher está em busca de agradar outros homens, a fim de relacionar-se com eles sexual e/ou afetivamente. Esse argumento revela o quanto o sexismo, a desigualdade entre os sexos e a intolerância ainda estão vivos e atuantes na nossa sociedade, assim como continua viva a visão das mulheres como meros brinquedos sexuais do homem.
Os homens transgêneros de hoje podem ser comparados àquelas mulheres “degeneradas” da década de sessenta que tiveram que queimar seus sutiãs em praça pública para terem reconhecidos direitos que lhes haviam sido negados por milênios. Na medida em que empreendem penosas e solitárias batalhas para terem o pleno direito de expressarem publicamente a sua identidade, o homem transgênero está realizando a revolução masculina que tem sido adiada e sutilmente combatida pela maioria dos homens cisgêneros. Escravos de um modelo de “macheza” arrogante, sacana e mesquinho, preferem continuar submissos a patética tarefa de renovar diariamente seus “atestados de homem”, em vez de lutarem pela liberdade de expressão a que todos nós temos direito neste mundo, como seres humanos e cidadãos.
(Letícia Lanz, 01-03-2012).
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