Num país altamente machista e transfóbico como o nosso, não é de se estranhar que a questão transgênera continue a ser tratada de maneira tão superficial, preconceituosa e vulgar pela mídia em geral.
De olho no mercado, reportagens oportunistas continuam mostrando pessoas transgêneras como se fossem atrações de museu de cera itinerante, curiosos exemplares de “desvios sexuais”, dispostos entre galinhas de três pernas e genitálias deformadas por doenças venéreas, dentro de velhos ônibus aposentados, escuros e mal-cheirosos. O circo assim montado tem o claro propósito de despertar um misto de pasmo (ooooooooh!), horror (cruuuuuzes!) e repúdio (que absurdo!) em um público hipócrita e preconceituoso, que faz questão de reafirmar sua “normalidade”, “moralidade” e “temência a Deus”, ao mesmo tempo em que procura ávido por qualquer traço de pornografia capaz de “apimentar” seu gozo medíocre de cada dia.
Por displicência profissional ou mera conivência com a intolerância e o preconceito, jornalistas mal-preparados, mal-informados e muitas vezes mal-intencionados, jamais descem ao mundo real da transgeneridade, onde nada existe do glamour, do gozo ou das orgias que descrevem em suas reportagens. Apenas o choro e o ranger de dentes de pessoas cuja liberdade de expressão é sistematicamente negada, que não têm sequer o direito de manifestar livremente a sua própria identidade de gênero.
Sexo vende. Essa é uma regra jornalística, raramente explicitada, mas abertamente praticada em todas as redações de todas as mídias de todo o mundo. E quanto mais lascivo, apimentado, decadente e pornográfico, melhor. Sexo que desperte o tesão de pessoas comuns, vivendo de maneira miseravelmente comum, irremediavelmente trancadas no seu mundo de bloqueios, repressões e fantasias recalcadas. Como esses trogloditas insanos, a quem os comerciais de TV oferecem mulheres fantásticas em latas de cerveja para que se embriaguem nos botequins do mundo, depois de vencerem as intempéries de mais um dia.
Talvez a mídia tenha razão em investir apenas nos aspectos mais vulgares e pitorescos da transgeneridade. Noite após noite, o que mais transparece da transgeneridade é a vida bandida das travestis que fazem ponto nas esquinas do mundo, vendendo o sexo do sonho dos outros pra custear a dura realidade das suas próprias vidas. Elas, saídas invariavelmente dos extratos mais pobres da população (melhor seria dizer “expulsas”), encontram na sexualidade masculina reprimida e insatisfeita, a única porta escancaradamente aberta aonde expressar não apenas a sua identidade transgênera mas a imensa criatividade e potencial de trabalho que são sistematicamente impedidas de mostrar em outras áreas de atividades.
É evidente que a transgeneridade não se restringe ao mundo das travestis de rua. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que a transgeneridade não está presente apenas nas baixas camadas de renda da população, que está longe de ser apenas mais uma das “anomalias sociais” atreladas à pobreza. Há pessoas transgêneras em todas as camadas da população, em todas as faixas etárias, em todas os ofícios e profissões, em todas as religiões, mesmo aquelas que mais se orgulham de não possuir pessoas transgêneras entre seus ortodoxos seguidores…
Curiosamente, as pessoas transgêneras no topo da pirâmide também se tornaram presença frequente na mídia. Só que, ao contrário das travestis de rua, sempre vinculadas nas reportagens a coisas como prostituição, promiscuidade, delinquência e comportamento escandaloso em público, as pessoas no topo da pirâmide são apresentadas como revolucionárias, criativas, inovadoras, sofisticadas e glamurosas nas práticas que adotam para expressar sua identidade transgênera.
São exatamente essas extremidades que aparecem nos nossos tendenciosos (e maliciosos) meios de comunicação: – as travestis, bem na base da pirâmide, por suas peripécias sexuais em nome da própria sobrevivência e os “crossdressers” e “transexuais” no topo da pirâmide. Os crossdressers pelo seu excêntrico hobby de “se vestir de mulher”, como o ex-prefeito de Nova York, Rudolf Giuliani, e as transexuais por suas dispendiosas transformações físicas, envolvendo caríssimos tratamentos e procedimentos cirúrgicos.
É inegavelmente mais confortável ser uma pessoa transgênera nos extratos mais elevados do que na base da pirâmide social (como, de resto, ser qualquer outra coisa nesse mundo…). Não que, pelo fato da pessoa ser rica, desapareçam instantaneamente os problemas de cerceamento à sua liberdade de expressão. Porém, com mais recursos financeiros à disposição, fica muito mais confortável expressar a própria identidade transgênera, seja de maneira pública ou de modo inteiramente privado. Se uma pessoa rica assumir publicamente a sua identidade transgênera, será no máximo considerada “excêntrica”. Embora o seu “perfil burguês” possa sofrer algum arranhão superficial, é altamente improvável que o seu status socioeconômico seja duramente afetado, com consequências como perda de emprego e resultante penúria financeira. Da mesma forma, se uma pessoa rica optar por manter em sigilo a sua identidade transgênera, poderá dispor de local, alugado ou próprio, ou ainda deslocar-se livremente para lugares distantes da sua comunidade de residência a fim de expressar, livre e confortavelmente a sua identidade.
As pessoas das classes intermediárias da sociedade é que padecem do verdadeiro desconforto e sofrimento que é ser transgênero numa sociedade ainda amplamente hostil à diversidade de gêneros. Transgênero de classe média é como cabeça de bacalhau, que todo mundo sabe que existe mas que ninguém nunca vê, nunca viu. Trata-se de um grupo que sobrevive como pode, ao “deus-dará”, inteiramente sem rosto e sem voz, mergulhados em tantos pavores absurdos que o terrível medo de ser descoberto chega a ser o menos assustador. No dia-a-dia, devem reprimir e recalcar, sem piedade, a expressão da sua identidade de gênero, ato que, se fosse realmente livre como prevê a constituição, levaria muitos a se vestir exclusivamente com roupas do gênero oposto ao seu. A questão é que todos – por preconceito e desinformação da sociedade quanto ao fenômeno da transgeneridade – precisam manter a fachada de respeitáveis cidadãos da classe média, sem a qual poderiam ter os seus próprios meios de subsistência seriamente comprometidos, sem falar no qui-pro-quó entre familiares, colegas de trabalho, amigos e inimigos se sua personalidade transgênera viesse a ser revelada.
Tradicional reduto de reacionarismo e atraso, é na classe média que se articulam as maiores resistências em defesa de valores humanos burros e superados que, por serem a base de funcionamento disso-tudo-que-taí, são cuidadosamente cultivados nas mentes das pessoas pelas forças conservadoras da sociedade.
Embora não seja visto nem sequer mencionado nas bombásticas reportagens da mídia mercantilista, é nesse vasto extrato social da classe média que se encontram os nichos mais numerosos e representativos de pessoas transgêneras. Possuir uma identidade transgênera, na classe média, costuma ser um verdadeiro inferno para o infeliz ou a infeliz possuidora. Sim, porque não existem apenas pessoas transgêneras homens: – as mulheres também vivem – e como vivem – o drama da transgeneridade.
Diante da franca repulsa, da zombaria, da possibilidade de exclusão nos atos mais simples e elementares da vida em sociedade, a maioria das pessoas transgêneras de classe média simplesmente se ocultam, chegando até mesmo a negar e renegar publicamente a sua condição, se eventualmente questionados a respeito.
Os valores relacionados a gênero são extremamente fortes e arraigados dentro da classe média. Por medo, vergonha e culpa de ferir as sagradas normas da masculinidade expondo a sua condição transgênera, a maioria das pessoas assim deixam simplesmente de existir. Viram fumaça, numa realidade triste e esfumaçada onde, na prática, ser transgênero continua sendo crime hediondo e inafiançável, embora, no discurso politicamente correto (ou nas reportagens glamurosas da mídia) apareça como “revolução” irreversível que já é amplamente aceita pela sociedade… Por outro lado, muitos homens trangêneros da classe média mantêm relações estáveis com namoradas, noivas e esposas, quase sempre muito conservadoras no quesito da masculinidade dos seus maridos, que deve traduzir-se em vestuário másculo, sério e despojado, exatamente o contrário do vestuário com que pessoas transgêneras desejam apresentar-se ao mundo.
Sendo, de longe, o segmento mais amplo e diversificado do universo transgênero, o drama de pessoas transgêneras de classe média jamais recebeu nenhum tipo de atenção por parte da mídia, como tampouco foi objeto de algum estudo acadêmico a respeito de gênero, embora eles se avolumem a cada ano que passa.
Para todos os efeitos – práticos e políticos – esse “batalhão de transgêneros de classe média” realmente não existe. Não há qualquer prova física palpável da sua existência além de metafísicas “personas virtuais” e endereços de email que aparecem e desaparecem instantaneamente. Ou seja, os poucos que se arriscam a manifestar sua presença nesse mundo, fazem isso de modo exclusivamente virtual, na calada da noite, completamente apavorados diante da menor possibilidade de vir a ser descobertos.
Ainda não apareceu na mídia brasileira nenhuma reportagem isenta, séria e honesta sobre as dimensões atuais do fenômeno transgênero em nosso país. É preciso divulgar a realidade nua e crua da enorme população transgênera de classe média, que vive enclausurada num mundo de tormentos, e cuja existência não tem nada do glamour, do sexo ou da orgia que a mídia insiste em focalizar como emblemas do mundo transgênero.
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