1. Cultivar e desenvolver o meu próprio Estilo de Ser
Crossdressing é, antes de mais nada, Estilo de Vida, diga-se de passagem um estilo altamente incompatível com a maioria dos procedimentos típicos adotados pelos homens em geral.
Ainda que a CD viva “en femme” apenas de quando em vez, seus valores e hábitos de homem nunca deveriam chocar “gritantemente” com a sua condição transgênera, SOB PENA DESSE HOMEM JAMAIS CONSEGUIR MIMETIZAR A FIGURA DE UMA MULHER!!!
Hoje eu tenho clara consciência que a coisa mais importante para uma pessoa transgênera é desenvolver – e cultivar – o seu próprio estilo de ser.: – um modo próprio de pensar, de agir, de se comportar, de frequentar ambientes, de conviver com outras pessoas, de dizer “eu existo”, “eu sei a que vim” e “eu estou aqui”.
Estilo de ser é muito mais, mas muito mais mesmo, do que estilo de se vestir e de se maquiar como mulher. Digo, aliás, que o estilo de uma cd se produzir, com roupas, calçados e maquiagem, é sempre UMA MERA consequência do seu estilo de ser.- e não o contrário, como muita gente imagina.
Um Estilo de Ser compreende aspectos estruturais na vida de uma pessoa. Aspectos que vão desde hábitos, práticas e preferências pessoais – inclusive sexuais – até crenças, valores, posturas, comportamentos e relacionamentos interpessoais.
Invariavelmente, quando a gente inaugura o crossdressing em nossas vidas, quer dar vazão a algum “estereótipo” de mulher “que a gente não tira da cabeça”. Esses “estereótipos” podem e devem ser respeitados como importantes pontos-de-partida para o nosso crossdressing, pois é vivenciando-os que vamos conseguir compor, pouco a pouco, a nossa “persona feminina. Eles podem variar de “cheap street lover” a “high tech woman”, com escalas em “clubber girl”, “lady madonna”, “cachorra” ou “Dama de Camafeu”.
Mas Estilo é muito mais do que qualquer um desses tipos estereotipados de mulher que, no início do nosso crossdressing, a gente quer (precisa e deve!) incorporar e mostrar ao mundo. A menos que a gente queira manter o nosso travestismo no nível mais pobre e menos recompensador que ele tem a nos oferecer, que é justamente esse de compor e mostrar ao mundo “uma figurinha carimbada” de uma série por demais conhecida e explorada.
Estilo é trabalho de muita construção pessoal – tanto interior quanto exterior – e necessariamente nessa ordem, porque são as mudanças externas que devem resultar das mudanças internas. O contrário, quando acontece, é sempre de maneira traumática.
2. A roupa mais adequada para o meu Estilo de Ser
Roupa jamais será questão de preço – mas de ESTILO. Uma vez que eu descubra – e cultive – o meu próprio estilo de ser – eu me torno naturalmente capaz de decidir o que vou usar, como usar e onde usar, sem nenhuma preocupação com opiniões alheias. Também, se eu sei o que eu quero, o que fica bem em mim de acordo com as minhas escolhas e decisões, sou capaz de descolar roupas incríveis até em balaios das Lojas Americanas e em brexós perdidos num subúrbio qualquer.
Ao contrário, sem ter – nem saber – qual é o meu estilo, posso gastar de rios de dinheiro que, ainda assim, os resultados finais serão sempre decepcionantes – para mim e para os meus “expectadores”.
Enquanto não está estruturado em torno do seu próprio eixo, ou seja, enquanto não é capaz de praticar o seu crossdressing SEM MEDO NEM CULPA DE SER FELIZ, a CD acaba comprando tudo que não precisa – e quase nada do que é realmente lhe seria necessário para uma boa produção. Isso porque, sem ter noção do que a gente quer, sem ter pelo menos o “esboço de um estilo pessoal”, a gente compra muito no impulso, muito com base no que vê e acha que vai ficar bem na gente. Ou compra aquele tipo de roupa que a nossa “fantasia do que é o feminino” nos inspira a comprar… que não raro são peças lindíssimas… de sex-shop… Ou compra a primeira peça que consegue pegar na arara de uma loja de Departamentos, morrendo de medo que alguém tenha visto a gente cometer esse “crime terrível”. Ou compra simplesmente porque a vendedora fui super agradável com a gente, porque nos acolheu super-bem ou disse que a gente estava simplesmente maravilhosa naquele vestido “tubinho” de R$700,00 fazendo força para cobrir um “tubão”, mesmo que para isso deixasse à mostra todas as nossas “banhas excedentes” (e até as banhas normais…) Mas a gente se sentiu tão acolhida na mão da vendedora, né?
Depois, quando chega em casa, é hora de descobrir, completamente desolada, que nada combina com nada que a gente já tem ou que porventura venha a ter!!! Isso quando a gente, pelo menos, consegue “entrar” novamente dentro da peça…
Para escapar desses “acidentes de percurso”, tão típicos na vida de cds até veteranas, a melhor dica que conheço é olhar todos os desfiles de moda e lançamentos da estação. Eu olho, olho, olho. Quando eu acho que alguma produção combina comigo, com o meu estilo de ser, eu copio a imagem e colo numa pasta que eu chamo de “modelos”.
Nem precisa comprar revistas caras. Na própria internet, a gente encontra facilmente todos os grandes desfiles de moda da Europa e dos EUA. O melhor site que conheço é o www.style.com. Embora seja preciso, no mínimo, algumas “horas” pra ver, pelo menos, uns dez por cento dos desfiles disponíveis no site, juro que a gente sai recompensada mesmo com o pouquinho que vê.
De quebra, ao olhar tanto desfile, a gente acaba aprendendo um monte de coisas sobre postura feminina – o grande “calcanhar de aquiles” de toda CD.
3. O valor do cabelo na aparência geral de uma pessoa
Não é a toa que 11 entre 10 mulheres GG passam a vida inteira às voltas com seus cabelos. A verdade é que cabelo é tudo e cabelo muda tudo no visual de uma mulher.
Um dos maiores crimes estéticos praticados pela sociedade contra os homens é justamente não permitir que eles escolham os cabelos que querem ter. Os homens são interditados até de usar peruca!!!
Descobri que a escolha da peruca é o primeiro passo para uma boa montagem. Eu só decido a roupa que vou usar depois que escolho a peruca que vou usar ou o “jeito” que eu vou dar no meu cabelo. Cabelo faz toda a diferença. Tem roupas – e até calçados!!! – que simplesmente não combinam, de jeito nenhum, com certos cortes de cabelo, penteados ou perucas!!!
Por incrível que pareça, os principais “defeitos técnicos” das perucas usadas por CDs não estão relacionadas com a cor dos cabelos. Não há problema nenhum em louras usarem peruca morena ou morenas usarem perucas que louras, a menos que a produção final “force” demais a barra e desde, é claro, que esse não seja exatamente o propósito da produção: – balançar o coreto!
Fui aprendendo que os verdadeiros pecados de uma peruca são:
1 – cabelo achatado no alto da cabeça, dando a impressão de que a pessoa passou as últimas horas carregando uma lata d’água bem ali.
2 – peruca colocada muito alto na linha da testa, quase deixando (ou deixando mesmo) à mostra os cabelos naturais da pessoa.
3 – peruca colocada muito abaixo da linha da testa, parecendo que a pessoa está usando não uma peruca, mas um chapéu.
4 – peruca colocada completamente solta sobre o couro cabeludo, sem o auxílio de uma rede e/ou de grampos, que faz com ela “dance” no couro cabeludo, produzindo deslocamentos simplesmente ridículos
5 – perucas nitidamente menores do que a cabeça da pessoa que, além de se denunciarem à primeira olhadela, dão um aspecto de que a cabeça da pessoa encolheu.
E, finalmente,
6 – perucas de (muito) má qualidade, que deixam antever facilmente a linha da testa ou a própria “trama” dos fios no alto da cabeça.
4. Aprender a fazer a minha própria maquiagem (auto-maquiagem)
Da mesma forma que uma peruca é capaz de estragar toda uma produção, uma maquiagem adequada pode ser a “salvação da lavoura” de uma crossdresser”. A maquiagem, quando bem feita, é capaz de enriquecer a produção mais pobre (como também, em menor escala, empobrecer uma ótima produção nos demais quesitos de roupa, calçados e adereços).
Embora sejam terrivelmente decepcionantes as nossas primeiras tentativas de nos auto-maquiar, esse é um aprendizado fundamental na vida de uma CD. É sempre um grande desafio, e por isso mesmo uma arte ancestral, a criação de uma figura de mulher a partir da matéria prima nada favorável de um rosto de homem.
Os personagens femininos do teatro Kabuki, no Japão, são até hoje vividos por homens, que passam horas à fio se maquiando para oferecerem ao público a ilusão de que são mulheres. Toda vez que vou me maquiar, gostaria de pensar que estou me preparando para viver uma personagem do teatro kabuki e que, portanto, devo cuidar de detalhe com o maior esmero possível. Entretanto, isso quase nunca é possível, para dizer a verdade. Senão eu acabo chegando à meia noite em todos os meus encontros – isso se eu não ficar presa na frente do espelho até as duas da madrugada…
Além do mais, maquiar é um atributo feminino por excelência, de modo que o seu aprendizado e cultivo me trouxe adicionalmente a oportunidade de penetrar nuances muito específicas da vida de uma mulher: paciência, senso de proporção, observação, atenção e… sensualidade.
Aprender a me maquiar foi um dos grandes momentos da minha vida de crossdresser. Só me dei conta de que eu já tinha adquirido um “senso de liberdade de ser mulher” quando me senti
basicamente seguro e capaz de escolher e usar os meus próprios tons de sombra.
Na minha lista de produtos de maquiagem eu não deixo faltar de jeito nenhum os seguintes itens:
a) CINCO produtos de preparação da pele
1. creme hidratante facial
2. loção revitalizante
3. corretivo líquido
4. base
5. pó compacto
b) OITO produtos de maquiagem propriamente dita
1. lápis de olho
2. lápis de sobrancelha
3. sombra clara e escura, dentro do mesmo tom
4. delineador líquido
5. rimmel
6. blush
7. lápis de contorno de lábios
8. batom-gloss
Em complemento, não deixo faltar no meu estojo pelo menos três ótimos pincéis, de cerdas bem macias e da melhor qualidade possível (em pincéis não se deve poupar), sendo um largo, um médio e um fino.
Aprendi a me maquiar me maquiando. Não acho que haja outra maneira da gente aprender. Se não puder ser ao vivo e em cores – a melhor escola – sugiro navegar no site www.http://www.taaz.com/makeover.html , onde é possível fazer inúmeras simulações combinando cores de cabelo, tipos de penteado, batom, sombra. Uma vez eu fiz até o upload da minha foto para treinar em cima dela. Mas quem não quiser fazer isso, pode usar qualquer uma das fotos que existem na galeria do site, preferencialmente de alguém com um formato de rosto semelhante.
5. Sentir-me feliz e realizada com os resultados que alcancei com o meu crossdressing
Vez por outra, toda CD se sente abatida e desolada por não conseguir expressar, através de suas montagens, todos os atributos físicos da mulher que tem “como modelo da mulher que deveriam ser”.
Muitas vezes eu já me senti assim. Mas descobri que o único modelo de mulher que eu posso representar é o meu mesmo ou seja, eu mesma. Só posso ser o que eu sou, do jeito que eu sou e agradecer a todas as oportunidades que eu tenha de manifestar a minha transgeneridade, por tanto tempo duramente sufocada pelo mundo à minha volta. Como também agradecer por ter aprendido que a minha “mulher de fora” é apenas o reflexo do meu “eixo feminino” interior. E esse “feminino interior” que eu devo cultivar. É na construção e manutenção desse “eixo interior” que eu devo trabalhar, se quiser progredir como ser humano. O meu crossdressing é apenas instrumento para isso.
Todas devíamos ter idéia do tamanho da conquista que estamos realizando em nossas vidas. Para mim, não houve vitória maior na minha jornada existencial como homem, conforme fui classificado ao nascer, do que vencer a tremenda barreira que me separava da minha própria feminilidade, superando o imenso estigma social que me impedia de me vestir como mulher e de exercer papéis sociais considerados próprios da mulher.
A mulher, há muito tempo, aprendeu a fazer isso e o resultado está aí para ser visto, a olho nu, por todos que ainda duvidam da força imensa que é libertada quando se livra da ditadura do gênero. Talvez a maioria de nós não se dê conta de que, os nossos sofrimentos para sair do armário talvez sejam as dores do parto de uma nova dimensão humana: – a dimensão trans-gênera.
A prática de crossdressing é, sem dúvida, um dos aspectos mais ricos da personalidade transgênera. Acho simplesmente maravilhoso eu ter aprendido e estar podendo representar socialmente um papel totalmente oposto àquele que me obrigaram a aceitar em função do meu sexo genital. E mais: – ter conseguido fazer isso sem que ter que chutar o pau de (quase) nenhuma barraca…
Quanto mais eu consigo fundir as minhas “partes naturais” que a sociedade obrigou-me a manter separadas uma da outra por tanto tempo, mais eu percebo um crescimento da minha aceitação pelas outras pessoas e o reconhecimento delas de que eu sou alguém único nesse mundo. Mas não é isso que todos nós somos? Únicas? Por que, então, essa “compulsão” para ser monotonamente igual a todo mundo?
Talvez seja exatamente isso que respeitam em mim: – a minha determinação de ser o que eu sou, diferente de quem quer que seja, por mais que parecer “igual” pudesse resultar para mim em ganhos materiais.
Poucas coisas nesse mundo me deixam tão feliz quanto poder expressar a minha própria mulher, que hoje, posso dizer, não existe mais apenas “dentro” de mim, mas já se tornou “parte de minha própria pele” – e como! Somos dois em um e os dois não são absolutamente distintos um do outro: – a separação é meramente didática, para que eu possa minimamente continuar transando com a sociedade à minha volta.
O importante é continuar celebrando todo e qualquer avanço conseguido na libertação da “inteireza do meu ser”. Ficar, cada vez mais parecida comigo mesmo ou parecido comigo mesma.
Letícia Lanz
08-07-2009