segunda-feira, 17 de abril de 2017

livros

caninos
Se com David, os figurinos adotados ligavam-se à sua persona artística, não pude deixar de ver a semelhança com a performance “Retrato de uma senhora, 1988”, em que o polêmico casal Caleb e Camille Caninus planejaram criar uma comoção num concurso de beleza para meninas. Para isso, convenceram o filho relutante, Buster, a ser disfarçado e a concorrer com as demais garotas – Annie, a filha, não serviria, pois, se vencesse, não diria “nada sobre a questão dos gêneros e a objetificação e as influências masculinas no ideal de beleza”. Só não esperavam que o filho chegasse realmente à final da competição.
Nenhum dos Caninus podia negar: Buster estava deslumbrante. Quando ele veio até a dianteira do palco com o seu vestido de festa ridiculamente lantejoulado e com os com os compridos cachos louros balançando no ritmo de suas passadas confiantes, os demais membros da família Caninus começaram a se dar conta de que ele tinha uma possibilidade real de vencer. Enquanto Caleb continuava a filmar tudo com sua câmera, Camille agarrou a mão de Annie e cochichou: “Ele vai ganhar, filha. Seu irmão vai ser a miss Trevinho-Encarnado do ano”. Annie olhou para Buster, cujo rosto parecia paralisado de felicidade, e no mesmo instante compreendeu que, para seu irmão, aquilo não tinha mais nada a ver com a ideia de fazer um manifesto artístico. Ele queria aquela coroa. (“Caninos em família”, de Kevin Wilson, Companhia das Letras)
menino-de-vestido
Para além do luto e da manifestação artística, encontrei justo num livro infantil um personagem que quer usar vestido apenas porque parece mais legal do que as roupas normais.
Da mesma forma que Justin, personagem do seriado Ugly Betty, adorava a revista Mode, Dennis (o protagonista de O menino de vestido, de David Walliams, Intrínseca) é fascinado pela Vogue – tanto quanto gosta de marcar gols pelo time do colégio. Sua vida meio triste (o abandono pela mãe, a depressão do pai, as brigas com o irmão, a regra familiar de proibição dos abraços) muda quando ele se torna amigo de Lisa, a guria mais bonita do colégio (por quem ele e o irmão têm uma paixonite), durante um castigo escolar. O interesse de ambos pela famosa revista de moda cria uma intimidade que leva posteriormente à oportunidade de Dennis se passar por Denise, uma estudante francesa de intercâmbio.
Sim, rolam altas confusões. Aliando algo do estilo politicamente incorreto de Road Dahl (as ilustrações de Quentin Blake ajudam na impressão) e algo do humor de Lemony Snicket (nada condescendente com as crianças), David Walliams cria uma sequência deliciosa de passagens memoráveis, ridicularizando certos preconceitos (ainda que não iluda o leitor, mostrando a gravidade e a capacidade de causar dor destes) e brincando com o que o senso comum nos faz esperar.
Um exemplo? Depois de admitir para a mãe de seu melhor amigo, Darvesh, que foi à escola usando um vestido laranja de paetês, Dennis ouve o seguinte dessa senhora, horrorizada: “Ai, Dennis, que horror! Puxa vida, laranja não é mesmo sua cor. Com seu cabelo claro, você provavelmente ficaria bem melhor com um tom pastel, como cor-de-rosa ou azul-bebê.”
Fica, portanto, a dica da senhora-mãe-do-Darvesh: fique menos preocupado com o que está vestindo e mais atento a outros detalhes – como se a cor escolhida valoriza o seu tom de pele. Uma baita dica.

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