BRENO ROSOSTOLATO* -
Precisamos falar sobre nós. Necessitamos olhar mais para fora e sair do conforto do quadrado que nos molda. A propósito, o que nos falta mesmo é contorno sem molduras e, para isso, precisamos mesmo nos desapegar de algumas coisas. O primeiro passo é começar o quanto antes a repensar nossas certezas, que na verdade não nos pertencem.
Tais certezas são alimentadas por este quadrado fictício. Nossas convicções estão para nós o que a pílula azul está para a matrix. As pessoas querem acreditar naquilo que não as conduz para reflexões. Viver a mesmice, as normoses é conformar-se com a mediocridade. E a sexualidade? Vai muito bem, obrigado. Está em constante transformação e é sobre isso que precisamos conversar.
A concepção binária de que existem homens e mulheres, definitivamente, não existe. A ideia homem/mulher, bem como masculino/feminino, é uma criação social que escraviza o corpo. Porque o corpo muitas vezes não corresponde à identidade de fato da pessoa.
Moldes
Os gêneros são moldes a favor desta escravização dos corpos e da sexualidade, arbitrariamente conduzindo o prazer, o desejo e a singularidade de cada um. François de La Rochefoucauld, aristocrata e moralista francês já dizia: ‘Nada é tão contagioso quanto o exemplo’. Referindo-se aos gêneros, esta crise existencial do ser humano emerge porque não segue mais tais exemplos. Não admite, inclusive, modelos estereotipados, segregadores e censores ou, de fato, não existem exemplos, o que existe são subjetividades e identidades plenas.
O que é considerado minoria, estranho, anômalo, doente e bizarro grita e se faz escutar. Reivindica uma liberdade que não é absurda, mas é emergencial, para todos. Uma autonomia que reverbera rompendo com preconceitos e discriminações. E diga-se de passagem, autonomia é não viver atrelado a padrões.
Aos que dividem o mundo entre minorias e maioria, o discurso entorpecido se enfraquece. No mesmo movimento que na sexualidade não existem padrões, ouso afirmar que não existem maioria. O que existe são pessoas amedrontadas com uma realidade que não as torna exclusivas ou únicas.
Binaridade
Existem pessoas que não se encaixam à esta binaridade de gênero, masculino/feminino. Não se reconhecem exclusivamente homem/hombridade nem mulher/mulheridade. Possuem características individuais que se afastam do enquadramento exclusividade/totalmente/sempre dos gêneros.
Os não-binários ou genderqueer são identidades muito particulares à pessoa, portanto devem ser respeitados, já que transitam livremente pela rigidez dos gêneros. Possuem uma expressividade individual que não é generificada e inclui neutralidade, ambiguidade, multiplicidade, parcialidade, ageneridade, outrogeneridade e fluidez de gênero.
O conceito não-binário é exclusivo das identidades trans* (transexuais, transgêneros, travestis, crossdressers, dragqueens e dragkings). A skoliorromanticidade (skolio vem do grego ‘tortuoso, desviante’) é uma identidade romântica, uma orientação romântica, que se caracteriza pela atração romântica por gêneros não-binários e genderqueer, independentemente da expressão de gênero. Não são, necessariamente, skoliosexuais, que seria a atração sexual por gêneros não-binários.
Não-binários
Algumas reflexões suscitam da premissa de uma não-binaridade. A primeira destas reflexões está relacionada à cisnorma. Uma cisnormatividade que patologiza. A mudança de classificação do Transtorno da Identidade de Gênero para Disforia de Gênero continua estigmatizando e mantém o engessamento da autonomia. O estranhamento social não faz do diferente um doente, mas apenas um outro. Não tem como patologizar as possibilidades. Tudo é possível quando pensamos na sexualidade.
Outro questionamento: precisamos ter um gênero para se socializar? Até que ponto interagimos e nos vinculamos ao outro partindo da intelecção dos gêneros?
O corpo, que deveria ser privado, público, é violentado psicologicamente pelas constantes intervenções sociais. Fisicamente nem se diga. A saúde do corpo é a preservação física e emocional e não a aniquilação, a castração pelo preconceito. Numa medida desesperada para não adoecer, este corpo flagelado suplica por aceitação e se sujeita à repressão. Um corpo abjeto que deveria ser respeitado e não relegado às perversões reacionárias de conceitos arcaicos.
Identidade
O empoderamento do discurso não-binário é a favor do esclarecimento e clarificação e do respeito. No mínimo, as pessoas não-binárias suscitam outro olhar sobre a construção da identidade, em que identificar-se é também reconhecer que não precisamos nos identificar se assim não contemplar, preencher o ‘EU’.
E nesta dualidade, neste paradoxal binarismo entre o certo/errado, bem/mal, o bom/mau, céu/inferno, claro/escuro, real/fantasia, puro/impuro, masculino/feminino, homem/mulher, anima/animus é que pautamos nossas escolhas. Todavia, o ‘Eu e o outro’ é a binaridade em que deve prevalecer a sensatez, cordialidade, a compreensão e reciprocidade. Ela ou ele é uma binaridade que sai de cena.
As certezas saem de cena, porque nada é, de fato, certo neste mundo. Nada é tão legítimo do que a percepção de si. Devemos legitimar essas percepções e não entorpecê-las com discursos estereotipados. Os equívocos são muitos – o ser humano é um – mas o designo é, no mínimo, limitador, tal qual os pressupostos, que implicam em supor sem sustentação, e que, muitas vezes, não abarcam as pluralidades do indivíduo. Somos reféns destes desígnos e por isso, refletir sobre a não-binaridade é necessário. A preocupação é ampliar do que responder. Depois de tudo isso, uma pergunta ainda persiste: ‘Afinal, é ela ou ele?’.
E isso importa?
Fonte: paupraqualquerobra.com.br
*Breno Rosostolato é psicólogo, formado pela Universidade São Judas Tadeu desde 2004, psicoterapeuta clínico especialista em sexualidade humana, pós-graduado em Arteterapia pela Universidade São Judas Tadeu e Hipnose Clínica pela PUC-SP. Professor da Faculdade Santa Marcelina, dos cursos de enfermagem e nutrição, campus Itaquera. Articulista sobre artigos ligados à psicologia, sexualidade, comportamento e tendências dos sites Mix Brasil (portal UOL), Be Style (postal R7), portal Terra e IG e ainda nos sites Top Vitrine e Nosso Clubinho (conteúdo infantil). Em 2008 lançou na Bienal seu primeiro livro de poesias, Escancarado.
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