“Ninguém nasce mulher, aprende-se a ser.”
A máxima da filósofa francesa Simone de Beauvoir não serve apenas para as que nasceram biologicamente mulheres.
Muitos homens, ao longo da vida, vão ter necessidade de expressar uma identidade feminina que se manifesta sobretudo na aparência.
A máxima da filósofa francesa Simone de Beauvoir não serve apenas para as que nasceram biologicamente mulheres.
Muitos homens, ao longo da vida, vão ter necessidade de expressar uma identidade feminina que se manifesta sobretudo na aparência.
Desde pequeno, nas primeiras lembranças da infância, Geraldo sabia que parte de sua personalidade era mulher. “Fui educado para ser um heroi masculino e nunca me adequei. É muito difícil para um homem aceitar que não se enquadra nas tradições e no que se espera dele”, afirma. Hoje, a identidade feminina de Geraldo, 58 anos, é Letícia Lanz. “Não sou homem nem mulher. É uma questão de expressão.”
Letícia, que atende também por Geraldo, é casada há 35 anos com uma mulher que detesta maquiagem. Alterna as identidades, conforme a necessidade de expressão que está sentindo, e abomina o abismo que existe entre os gêneros. É preciso deixar clara a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Identidade de gênero é o sentir-se homem ou mulher; nada ter a ver com a orientação sexual. No caso, Geraldo-Letícia tem um corpo biologicamente masculino e é heterossexual. “Encontrei essa mulher fantástica. Ter achado uma pessoa assim me deu possibilidade de expressar de maneira diferente”, conta.
A mulher de Letícia, A. D., tem 58 anos e é psicóloga. Conta que, quando o marido teve uma crise e saiu de casa, há seis anos, ela achou que ele estava com outra, até que conversaram. “Meu marido não tem outra, ele é a outra. Fiquei tranqüila”, diz, com bom humor. Foram necessárias muitas conversas e leitura de artigos e livros para que A. entendesse melhor o parceiro. Letícia começou a se travestir em casa e ir aos encontros do clube de crossdressers, acompanhada pela mulher. “É divertido, mas não é fácil”, admite A. A grande preocupação era, como a da maior parte das mulheres de crossdressers, em como o travestismo viria a público.
Na época em que Letícia assumiu a identidade feminina, os três filhos do casal tinham 16, 13 e 11 anos. Na base do diálogo, aceitaram a expressão do pai. “Não negocio mais com meu desejo. O dia que eu preciso me expressar, me expresso”, afirma Letícia. O ambiente de respeito e confiança foi estabelecido com muita conversa e empatia. “Tem dia que me incomodo na intimidade, tem dia que não. Não é algo que eu sempre estou a fim. Mas procuro não interferir”, diz A. Nos encontros do clube, A. muitas vezes era a única esposa presente, ainda que outros crossdressers levassem amigas. E ela é feliz? “Nesse tempo todo que a gente está junto, eu faria tudo de novo”, garante, e afirma que prefere a abertura e honestidade que tem na relação com o marido a um casamento sem essa transparência.
A internet foi fundamental para que muitos crossdressers e travestis tivessem mais informação sobre a necessidade interior de se vestir com roupas femininas, e passassem a compreender melhor o conceito de identidade de gênero. “Quando está travestido, o crossdresser é uma identidade feminina, mesclada com identidade masculina, que fica como pano de fundo da personalidade. Porque ele precisa manter e aceitar seu genital”, afirma Ronaldo Pamplona, autor do livro Os Onze Sexos. “A maioria dos crossdressers conta para a mulher depois de um bom tempo de relacionamento. Algumas mulheres por um período acham que o marido é bissexual. Mas com orientação correta, os dois têm claro que o assunto é outro, e que isso não vai desaparecer com psicoterapia”, afirma. Segundo Pamplona, embora haja casos em que o casal se separa, muitas mulheres, com cabeça mais aberta, acabam aceitando.
Aprender a ser mulher
Quando entende e aceita os aspectos femininos da sua identidade, o crossdresser em geral busca apoio para construí-la. “O eixo principal é a informação – ter alguém que consiga entender o que é o fenômeno”, afirma Pamplona. O crossdresser tem uma mulher dentro que nunca apareceu, que não foi menina, não foi adolescente. Ao acessar informações na internet e em grupos, ela ganha espaço social e vai se tornando cada vez mais feminina. Foi o que fez o cartunista Laerte Coutinho, que se vestiu de mulher pela primeira vez em 2009. A travestilidade veio com reflexões e descobertas decorrentes de uma crise pessoal. “Faz parte do processo de busca. Também corresponde – assim como modos de desenhar e produzir histórias – a antigos movimentos meus, de quando era criança ou adolescente”, afirma ao relacionar o crossdressing a uma inquietação de gênero. “Às vezes uso um elemento ou outro, às vezes me maquio, às vezes uso peitos. Varia muito, segundo o dia, a hora, o momento, o humor”. Para a namorada e os filhos, o processo de contar e familiarizar-se tem sido tranquilo, fora um ou outro momento de tensão ou estranhamento.
Ao estudar o crossdressing, a doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Anna Paula Vencato, defendeu em 2009 a tese “Existimos pelo prazer de ser mulher: uma análise do Brazilian Crossdresser Club”. Em seu trabalho, ela defende que “o crossdressing é uma montagem feita para momentos específicos e não para 24 horas por dia, 7 dias por semana”. Segundo Vencato, a maior parte das esposas aceita desde que os maridos não tornem o crossdressing público para familiares, filhos e amigos, ou façam modificações corporais como as induzidas por hormônios femininos. Em sua pesquisa, ela detectou que as relações com família e trabalho tendem a ser protegidas do conhecimento do crossdressing, em especial com relação aos filhos. “O medo de perdas sociais e econômicas está sempre implicado no contar ou não que se montam”, afirma. O fato é que o crossdresser é a mesma pessoa que era antes de tornar público o fato. Histórias como a de Letícia e de A. comprovam que fora do armário, a vida pode ser mais feliz e tranquila.
Fonte:http://delas.ig.com.br/crossdressers+quando+o+feminino+pede+espaco.html
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