Eu não vou descrever porque vocês vivem isso na pele e sabem que não é fácil ser crossdresser. Ninguém gosta de nós.
No cinema, na televisão e na literatura o crossdressing masculino invariavelmente é retratado de modo desajeitado, ora como tragédia, ora como farsa. Somos mostradas sempre ou como o elemento periférico e destoante da sociedade “normal” e que, portanto tem que ser afastado do convívio com os demais (Vestida para Matar, Brian di Palma, 1980; O Silêncio dos Inocentes, Honathan Demme, 1991) ou como palhaços, fazendo todo mundo rir das nossas trapalhadas como mulher (A Noiva Era Ele, de Howards Hawks, 1949 ou Quanto Mais Quente Melhor, de Billy Wilder, 1959).
O único momento cinematográfico em que o crossdressing masculino é levado a sério é na forma drag, dentro do contexto gay. Entretanto, essas histórias tipicamente focalizam mais a vida e as vicissitudes de homens gays, com o crossdressing (drag) fazendo um papel de apoio secundário(Priscila, a Rainha do Deserto, de Stephan Elliot, 1994 ou Para Wong Foo, Obrigada por Tudo, Julie Newmar, de Beeban Kedron, 1995)
Para ajuda-las a compreender o meu ponto de vista, tentem imaginar Hollywood fazendo um filme, estrelado por três astros do momento, com o enredo girando em torno de três crossdressers heterossexuais dirigindo de Nova York para um evento em Atlanta e cujo carro quebra em algum pequeno vilarejo ao longo do trajeto. Poupe o seu fôlego...
Sempre que homens heterossexuais se travestem em filmes isso acontece em nome da farsa, da comédia, da palhaçada. Outro dia eu estava olhando títulos na banca de saldos da minha loja local da Barnes & Noble e encontrei um pequeno livro sobre drags no cinema. O livro era muito interessante: se você o folheasse de um jeito, leria sobre homens se vestindo de mulheres nos filmes. Se você o virasse de ponta a cabeça e folheasse de trás para a frente leria a respeito de mulheres se vestindo de homens nos filmes. As duas partes se encontravam no meio do livro.
Em todos os exemplos do livro, as mulheres que se vestiram de homens no cinema encarnaram personagens marcantes, com problemas reais que só puderam ser resolvidos quando elas assumiram a identidade (e o status) de homem. Mesmo quando o filme era uma comédia, as mulheres travestidas de homens não eram, em nenhum aspecto, apresentadas de maneira burlesca ou cômica.
Homens vestidos de mulheres? Jerry Lewis, Os Irmãos Marx, Lou Costello, Tony Curtis, Jack Lemon, Cary Grant. No caso desses personagens, o uso de vestuário feminino é sempre feito no contexto de situações embaraçosas, becos-sem-saída em que até mesmo o “ato desonroso” de vestir-se de mulher passa a ser aceito. Para o público, não era de maneira alguma a opção mais desejável, mas era o único jeito. E isso faz com que a situação dos protagonistas apareça como hilária.
A ficção literária não faz muito melhor. No livro de Tama Janowitz "The Male Crossdresser's Support Group" (O grupo de suporte do Crossdresser Masculino), o personagem principal, uma mulher marginalizada trabalhando para uma Agência de Acompanhantes em Nova York finalmente “estoura” em sua profissão quando ela revela que na verdade é um homem.
A maioria das pessoas nunca vai encontrar nem será apresentada a um crossdresser. Podem até conhecer gente que é crossdresser, mas elas nunca saberão que eles são. Tudo que a maioria das pessoas sabe a respeito de crossdressing chegou a elas não apenas em segunda mão, mas também de modo altamente deturpado e preconceituoso. Definitivamente, nenhum crossdresser pode culpar as pessoas por terem uma concepção tão errada do que é crossdressing.
Mas e o que dizer a respeito da comunidade gay? Posso afirmar que nos meios gays não existe aceitação ampla e irrestrita dos crossdressers. Ao contrário do pensamento das massas, orientação sexual não está inerentemente conectada com gênero, assim como a imagem do homossexual afeminado é apenas um estereótipo.
Ainda que mais e mais organizações de gays e lésbicas estejam adotando políticas de inclusão dos chamados “transgêneros”, eu ainda não acredito que, ao nível de política de relacionamento pessoal, um gay ou uma lésbica sejam particularmente inclinados a aceitar um crossdresser.
Muitos crossdresser pensam que suas saídas estão limitadas aos bares e boates gays das suas comunidades. Eu tenho freqüentado bares nos últimos 25 anos, até mesmo trabalhado na porta de um ou dois. Nos bares, as pessoas não têm o mesmo tipo de comportamento que costumam ter no trabalho ou em casa. Você está tão propenso a encontrar problemas num bar gay como num bar hétero.
Finalmente chegamos à nossa própria pequena comunidade crossdresser, e cara, nossa casa é uma bagunça!
Recentemente o
Transgender Fórum colocou a seguinte questão para os seus participantes: “O que mais incomoda você na comunidade transgênera?”
Esmagadoramente, a maior concentração de respostas foi a respeito das suspeitas, disputas e rixas entre crossdressers, travestis e transexuais. O “cisma” existente dentro da comunidade transgênera foi de longe a queixa número um.
Eu tenho podido comprovar isso na própria cidade onde eu moro. Aqui há duas filias de organizações de apoio aos crossdressers. Uma é a Tri-Ess; outra é a auto-denominada “grupo aberto” (Open Group). A freqüência a ambos os grupos é muito baixa, algumas vezes não passa de 4 ou 5 participantes em cada reunião, que é semanal. Novas afiliações estão estagnadas, com o número de novos membros a cada ano ficando igual ou inferior ao número de desligamentos por falta de renovação ou simples desaparecimento.
Embora a política de filiação do Tri-Ess seja mais rígida, a maioria dos afiliados pertencem a ambas as agremiações. A participação de S/Os é praticamente nula.
Eu queria ter ganho um dólar para cada vez que ouvi a frase “ser apenas um crossdresser” ao longo dos últimos dois anos. Vinda de um crossdresser, soa como uma apologia ao gênero. Dita por transexuais, um rebaixamento. Quantas vezes eu ouvi de alguém que começou recentemente a tomar hormônios coisas do tipo
“e pensar que há um ano atrás eu era apenas uma crossdresser!”. Você pode imaginar o general Colin Powell se dirigindo a algum negro desempregado da periferia de uma cidade grande dizendo, todo sorridente e feliz,
“e pensar que há 40 anos atrás eu era apenas um favelado!”
Eu já ouvi transexuais dizerem que não saem em público com travestis porque elas sempre poderão ser mais facilmente identificadas por estarem perto deles. Por dedução, pode-se concluir que é ainda mais difícil “passar” se estiverem em companhia de crossdressers... Bem, pelo menos transexuais e travestis têm algo em comum conosco: todos nós desejamos “passar”. Deveríamos pensar nisso, antes de nos encastelarmos em esquinas opostas.
Eu não sou nenhum paradigma de feminilidade
(seja lá o que for que isto signifique), mas eu sempre me saí muito bem em público. E já fui a restaurantes e lojas com algumas transexuais realmente muito feias e desajeitadas, em função das quais eu recebi um monte de olhares e risinhos maliciosos que me doeram pra burro e deixaram minhas bochechas vermelhas, não de “blush”, mas de raiva. Mas eu tornaria a fazer isso de novo, com prazer.
O mundo hétero não gosta de nós, nós não temos nenhuma serventia para a comunidade gay e mesmo a nossa própria comunidade transgênera gostaria de se livrar de nós. Estranho, considerando que, como pessoas, crossdressers são esposos, pais, empregados, empregadores, profissionais liberais e proprietários de negócios. Cuidamos das nossas famílias, fazemos o nosso trabalho, estamos atentos à educação das nossas crianças, participamos da vida das nossas comunidades, enfim, cuidamos de nós mesmos e não aborrecemos ninguém.
Não fazemos nada que nos torne algum tipo de
persona non grata dentro das nossas comunidades. Ah! Eu quase me esqueci: - a gente é crossdresser...
Bem, aqui estou eu, uma página e meia de um artigo intitulado “uma condição básica para ser crossdresser” e nem comecei a responder a questão. Como tem sido o caso de muitos outros tópicos da minha vida, este tema também ganhou um novo enfoque a partir do exercício do meu papel de pai com a minha filha de nove anos.
Nos próximos anos, a vida dessa garota vai ser virada de ponta a cabeça e, na faixa dos 12 ou 13 anos, ela terá de tomar decisões a respeito de fazer sexo, usar drogas, beber, fumar, o que fazer do seu futuro. A maior parte do tempo ela estará em companhia de pessoas que estarão passando pelo mesmo redemoinho existencial, se deparando com os mesmos problemas, ameaças, oportunidades e desafios. Será que ela pode procurar algum tipo de ajuda e aconselhamento entre seus pares? De jeito nenhum!
Como adolescente, ela desejará pertencer ao grupo, simplesmente pelo fato de pertencer ao grupo. Volta e meia, ela terá que decidir se deve se comportar como todo mundo ao seu redor, ou comportar-se da maneira que ela acha mais correta. Como é que ela tomará essa decisão? O que neste mundo poderá prevenir que uma garotinha seja apanhada nas armadilhas e seduções de uma infinidade de mensagens verbais e não verbais que ela recebe diariamente do seu grupo?
A resposta é: uma pequena voz dentro da sua cabeça. Uma voz que a chama, tentando conduzi-la para um lugar seguro dentro dela mesma, onde a sua individualidade possa desabrochar e crescer de maneira segura, calma e auto-sustentada. Onde ela possa viver com ela mesma, do jeito que ela acha que deve ser.
Um amigo meu, muito sábio, que também é crossdresser, chamou-me a atenção para algo contido na nossa linguagem. Nós sempre pensamos nos seres humanos como tendo cinco sentidos: visão, audição, tato, paladar e olfato, embora nós usemos frases como “senso de humor” e “senso de direção”. Ainda que eles sejam sentidos, certamente não podem ser estudados cientificamente, como os cinco sentidos anteriores. Assim, obviamente, a ciência médica não os reconhece. O que dizer, então, a respeito do “sentido de si mesmo”?
Será que você tem um sentido de si mesmo quando deixa outras pessoas dizerem a você quem você é, o que você é, o que você deve pensar, como você deve se sentir? Você pode distinguir entre idéias originais e pensamentos que surgem de dentro de você mesmo e que refletem a atividade do seu “self” ou você permite que de alguma forma as idéias e as palavras de outras pessoas se transformem nas suas próprias?
Um forte sentido de si mesmo torna-se indispensável quando percorremos um caminho como o nosso, que a maioria à nossa volta considera inadequado, desonroso e impopular.
Um forte senso de si mesmo é absolutamente essencial quando participamos de um grupo ou organização que prescreve regras muito rígidas de como seus membros devem ser e agir. A pressão para se conformar a essas regras e condições choca diretamente com nossa noção do que somos como indivíduos.
Geralmente falamos de alienação no sentido relacional ou seja, no sentido de estar distanciado de outras pessoas, fatos ou eventos. Porém, a mais devastadora forma de alienação é o distanciamento de si mesmo, a perda do “self” individual e sua substituição por um “corpo coletivo”, ou seja, os padrões de comportamento do grupo.
Como uma garotinha adolescente, nós crossdressers estamos permanentemente sendo ora ameaçados, ora seduzidos pelo ambiente à nossa volta. As mensagens são claras e consistentes. Para todo lado que a gente olhe, as pessoas e as circunstâncias estão sempre nos dizendo que nós estamos errados. Para muitos, começa dentro da própria casa, com a rejeição e a perplexidade de esposas, filhos, pais, parentes e amigos ao nosso modo de vida. Mesmo entre nossos pares, há quem use o seu conhecimento de crossdressing para nos marginalizar ou nos submeter. E, é claro, dentro da própria comunidade (?) transgênera, há subgrupos que claramente não nos aceitam e francamente nos combatem e rejeitam.
Isto não significa dizer que travestis e transexuais sejam culpadas de todos os problemas dos crossdressers. Longe disso. Transgeneridade é muito mais uma criação de uns mil anos de patriarcado, primeiro cristão, depois patriarcado científico, do que o tabu de homens usando vestuário feminino. A existência de um diagnóstico clínico para a transexualidade e a tecnologia médica para “trata-la” faz as crossdressers parecerem indesejosas de procurarem ajuda para o seu problema. De fato, muitas crossdressers não vêm a si mesmas como tendo problemas.
E isso leva embora uma razão para o crossdressing. No modelo transexual, usar vestuário feminino faz com que a imagem exterior coincida com a imagem interior. Crossdressers, entretanto, não buscam ser mulheres no sentido definitivo do termo. Assim, a imagem interior permanece masculina enquanto a exterior se transforma em feminina. E daí?
E eu ainda vou acrescentar mais. Quando feita de maneira adequada por uma crossdresser que dedica tempo e energia para aprender a criar uma imagem de qualidade, que aprende a arte e o uso da maquiagem, que observa cuidadosamente a moda e aquilo que é mais apropriado usar tendo em vista o seu biótipo, sua aparência exterior é grandemente melhorada. O uso apropriado de maquiagem e vestuário melhora a aparência de qualquer um, homem ou mulher.
Já encontrei pessoas muito atraentes que eram homens usando maquiagem e indumentária feminina. Não garotas espetaculares, apenas pessoas de boa aparência. Elas “passam”? Provavelmente não, mas sua aparência bem cuidada certamente mereceria o respeito e atenção de todos. Não havia nada imoral ou pernicioso na sua aparência ou no seu comportamento.
Muitos crossdressers
(e transexuais) não sabem o suficiente a respeito do uso de maquiagem nem sobre o tipo de roupa que lhes cai melhor, nem o que está na moda. Muitos não sabem nem mesmo combinar peças e complementos de vestuário. O resultado disso é uma imagem sofrível. Mas essas coisas são itens que qualquer pessoa pode aprender e melhorar sensivelmente a partir da prática.
Infelizmente, os mesmos quesitos para ser crossdresser – um forte senso de si mesmo e uma natureza independente – também dificultam os crossdressers de se agruparem. Não é do perfil de pessoas com tais características se amontoarem em grandes rebanhos. Figuradamente, podemos dizer que o meio crossdresser é uma comunidade de capitães, cada um à procura de uma tripulação.
Teoricamente, qualquer crossdresser viveria com muito menos stress se permanecesse como um “homem normal”, vivendo o anonimato de uma vida de “homem normal”, fora do alcance de qualquer tipo de reprovação da sociedade.
Mas não é da natureza de quem é crossdresser. Ser CD significa expor a essência da sua própria natureza, ainda que isso desafie todos os cânones da sociedade, por representar a escolha de um caminho não-aceito e condenável.
Para isso é necessário um forte senso de si próprio, uma forte aceitação de si mesmo. É isto que faz um crossdresser. É isso que, de resto, faz qualquer pessoa realizar-se em qualquer coisa que venha a fazer na vida.
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(*) Yvonne é uma crossdresser casada com uma esposa S/O que mora em Albany, na região de Nova York. Seu site contém ótimos artigos e dicas para a vida de toda crossdresser.